segunda-feira, dezembro 5

Carta aberta a ninguém

Tudo começou numa carta aberta e numa carta aberta acaba. Mas desta vez sem o direito ao contraditório. Desta vez sem um final feliz.

Ninguém confunde o essencial com o acessório.
Ninguém confunde ideais com virtuais.
Ninguém oferece a felicidade por dez reis de mel coado em troca de guerrilhas sem sentido.
Ninguém prefere sofrer sozinho dores que se curam com ninho.
Ninguém promete que nunca se sofrerá a seu lado para depois tirar o tapete.
Ninguém faz juras de amor e as renega com um adeus unilateral.
Ninguém confunde o ... com a praça de Sevilha.
Ninguém troca o amor pela pedra de Sísifo e se regorzija na agradável tarefa de a rolar montanha acima.
Mas é isso o herói absurdo, não é? E Camus é que tinha razão: É preciso imaginar Sísifo feliz.
Só espero que essa pedra valha a pena. Não desejo que seja grande, pois correria o risco de ser mal interpretada, mas apenas que compense as cinzas semeadas num coração em chamas que foi cuidadosa e ponderadamente oferecido e negligentemente esquecido, misturado com uns papéis quaisquer.

Da outra vez despedi-me com a sabedoria do Aleixo, hoje despeço-me com uma sabedoria outra, a de José Mario Branco.

Carta a J.C.

Dá-me uma ajuda, ó médico das almas
Para escolher em que combate combater
Quem condeno eu à vida,
Quem condeno eu à morte
Que me podes tu dizer

Encostado à árvore do tempo
Folhas mortas, folhas vivas, estações
Nada disto faz sentido e o sentido do sentido
Não paga as refeições

Este torpor só tem uma solução
Sejamos deuses, é meter as mãos à obra
E no fazendo acontecendo
Deixar ir o coração
Que é o que nos sobra.

Ao fazer-se o mundo nasce de si próprio
Ser avô é uma alegria atravessada
Dá para rir e para chorar
Não temos nada com isso
E nada não é nada

Disseste um dia que tudo vale a pena
Tornar as almas mais pequenas é que não
Vamos sobre as duas patas
Juntar as partes da antena
Espalhadas pelo chão

Fecha a porta que vem frio lá de fora
Diz o coxo ao despernado, e eu aqui
Fui à procura de mim
Encontrei-me mesmo agora
E ainda não fugi

O tempo corre entre pívias e manhas
tudo fica cada vez mais como está
Mas ao correr desta pena
Não fico à espera que venhas
Eu já sou o que virá.

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